novembro 06, 2007

Um balaio sem fundo

Jacqueline Cíntia Fernandes
Aluna do Curso de Letras
Universidade Anhembi Morumbi

Peter O'Sagae
Professor de Literatura Infantil


Grandes ilustrações, textos pequenos: eis a primeira impressão que nos dá o BALAIO DE GATO de Mauricio Negro, artista gráfico, autor e ilustrador, nascido em São Paulo. Obra publicada pela editora Global, em 2000, que traz, lá no fundo, desafios que você nem imagina! Mauricio Negro faz poesia moderna, intertextual, imagética, apropriando-se da linguagem televisiva, video-clipes, histórias reais, atualidades do país e do mundo... para falar de gatos __ comparando-os a seres humanos, tramando relações do comportamento e da cultura do homem com o animal.
Folheando as páginas do livro, mesmo que superficialmente, percebe-se diversas referências de fácil identificação. Porém é preciso estar bem atento para as armadilhas de autor: o jogo que ele faz com as palavras, os recursos de linguagem texto&imagem, a mistura de histórias, tudo provoca uma certa confusão em nossa mente. Muitas vezes, o que pensamos não é exatamente o que pensamos... ou é muito mais do que aquilo que pensamos numa primeira leitura.
Atenção para a capa: o que ela nos mostra? o que o título diz? o que imagens e recursos gráficos querem nos dizer? Balaio de gato é uma expressão popular bem conhecida para indicar “confusão”. Prepare-se! A cor preta da capa até poderia ser associada a essa mixórdia de coisas e também a uma certa dose de superstição... No texto de apresentação, Mauricio Negro fala das relações que as pessoas nutrem com os gatos, principalmente gatos pretos: considerados na antiguidade como um tipo de talismã para trazer sorte, hoje tornaram-se sinônimo de azar. De quem? Seu, nosso: o livro revela ser um gato preto e a capa __ sua cara. Pode-se ver um olho grande de gato e, dentro desse olho, vários gatos misturados. Olho-balaio, confusão à vista. Quem seriam? Gatos e gatas, desconhecidos ou famosos... Se olhamos para dentro desse olho de gato, o que vemos enfim é nosso próprio reflexo: somos assim transformados em leitores-gatos, gatunos da leitura! Ainda na capa do livro, outro gracejo do autor que assina seu nome como “MIAUricio Negro”. O recurso: um trocadilho com as letras de seu nome...
A obra resgata vários tipos de gatos existentes. Negro não só coleciona diferentes perfis, mas também relaciona e correlaciona esses gatos uns com os outros. Sempre apresentados aos pares, o autor escreve/ilustra sobre um desses animais numa página do livro e, ao lado, oferece sua comparação com outro, por contraste ou aproximação de semelhanças que se dão ora no nível da imagem apresentada, ora no jogo semântico e/ou sonoro das palavras que escolhe para cada breve descrição. Não só balaio, mas tramando uma verdadeira cama-de-gato, o autor cruza velozmente muitos fios para uma expressão cheia de novidade e surpresa.
O diálogo com alguns contos tradicionais infantis, por exemplo, é feito de maneira leve, divertida e moderna. A criança de hoje, mesmo ligada à tecnologia, não teria grandes dificuldades em identificar algumas dessas referências intertextuais mescladas com ícones da cultura pop e cores do apelo publicitário.

“Pierre é um gato de botas.
Cindy é uma gata borracheira”.

O leitor de qualquer idade, sensível ao espírito lúdico, certamente encontrará graça no modo como Negro atualiza e proprõe um encontro entre o Gato de Botas e a Gata Borralheira... ambos os personagens fazem parte da coletânea de histórias de Perrault, autor francês __ e Mauricio adota um nome francês para sua versão do velho gato, talvez para que o leitor evoque o nome do escritor e seu país de origem, o que exige um repertório mais apurado a fim de reconhecer esses links intertextuais. Mas, há muito mais: um intertexto acaba virando vários intertextos e comparações... o nome Cindy é um diminutivo de Cinderella, a gata borralheira, mas também é o nome de uma famosa modelo internacional: a gata Cindy Crawford! Sim... e o autor nos deixa uma pista pertinente a esse respeito: uma pinta acima do bigode da gata borracheira igual a pinta que a linda modelo tem acima dos lábios, no lado esquerdo (sem contar a pose sexy que Cindy ostenta, como uma verdadeira "garota da calendário" dependurada na parede da borracharia). Gata borracheira, verdadeiramente não (viva o trocadilho sonoro, a paronomásia) mas gato borracheiro, com suas botas de grossa borracha, sim: os olhos de Pierre estão completamente vidrados na imagem da gata em sua oficina mecânica.

“Maysa, que gata mansa!
Mas cuidado, o gato dela é uma pilha. E avança!

Neste outro par de versos, a semelhança sonora é evidente. São rimas externas. Além disso, um trocadilho com o nome de duas cantoras brasileiras: a eterna Maysa e Marisa Gata Mansa. E a gata, muito branca, muito mansa, superciliosa, aparece deitada em sua almofada. Seus olhos estão voltados para a página seguinte, para o gato que é uma pilha! Se o verbal nos dá a idéia de um gato muito nervoso, vemos exatamente um gato musculoso com uma curiosa tatuagem no braço: um cão nocauteado, logo acima da expressão dura lex sede rex, como uma paródia do ditado latino ;-) no entanto, esse gato é um retrato estampado em uma pilha chamada Every Cat __ Mauricio Negro intertextualiza a forma do anúncio publicitário da pilha Eveready, a famosa pilha do gato... Olha a salada feita pelo autor, é de pirar qualquer cabeça!

“Miles é o negro gato.
Davis é um gato preto.”

No livro também, o autor dialoga com a canção “Negro gato”, eternizada por Roberto Carlos, e brinca com o nome do multi-instrumentista do jazz Miles Davis. A ilustração mostra Miles como o negro gato, um trompetista de calças listradas, suéter vermelho, boina amarela, anel no dedo mindinho, um charme de artista. Ele aparece como se estivesse na capa de um disco do selo Glue Note, trocadilho com o nome da gravadora especializada em jazz Blue Note... Já Davis é um gato preto e talvez, por esse motivo, um gato indesejado por trazer má sorte; sua imagem é um pouco sinistra e confusa: é como se fosse a própria sombra de Miles projetada sobre um piano vermelho. As teclas pretas são dedos de gato e toda sombra se curva numa atitude suspeita como se estivesse para arranhar o trompetista pelas costas! Assim, parece mesmo que Miles, o negro gato, foge de Davis, o gato preto... No jogo com as palavras, o escritor utilizou duas locuções verbais que se parecem iguais, mas não têm o mesmo significado, a não ser no sentido denotativo.

“Bill Gatos brinca com o mouse.
Fellini tem uma doce vida.”

Mauricio Negro intertextualiza a informática e o cinema, e outros dois perfis são curiosamente contrastados. Bill Gates, o homem da tecnologia, vira Bill Gatos e aparece "preso" dentro da tela do computador __ e, contrariando o texto, não pode assim brincar com o mouse, que tem a forma de um ratinho-robô... Será o mouse quem fará gato-e-sapato com o Gates aprisionado no mundo virtual (não estaria aqui um desejo confesso de todo usuário da informática?). Por sua vez, o famoso diretor italiano Frederico Fellini só poderia ser um gordo Fellini-gato. Dirigindo uma centena de ratos, ninguém estranha, tem uma doce vida __ é ele quem verdadeiramente brinca com os ratos (Negro aqui intertextualiza o filme produzido pelo diretor, La dolce vita, de 1961).
Enfim, o autor deixa claro com esta obra que gosta de animais e, acima de tudo, das relações que estes animais podem estabelecer em nossas vidas. No livro quase todo, ele compara os gatos com pessoas famosas do mundo real. São 32 perfis de “gatos” e “gatas” que estão sempre em evidência em nossa cultura mas, além de conhecimento, precisamos ter certa dose de malícia para identificá-los. É preciso driblar as armadilhas feitas pelo autor e ilustrador, entrar em seu jogo que é dominado por trocadilhos sonoros, verbais e visuais, deslocamentos de referências, um redemoinho de idéias que transformam esse instigante balaio de gatos em um balaio sem fundo, sem fim...